Transfusão de sangue: Aspectos éticos e legais
Transfusão de sangue: O médico está autorizado a desconsiderar a decisão do paciente e efetuar transfusão de sangue contra a vontade?
“Uma vez excitados, os espíritos não mais se detêm”[1]. Esta é a famosa frase de Voltaire ao narrar, na obra “Tratado da Tolerância”, um dos maiores casos de intolerância religiosa e preconceito ocorridos na França do século XVIII, em meio à rivalidade entre católicos e protestantes.
Um pai protestante, Jean Calas, é acusado falsamente do homicídio de seu filho mais velho, Marc-Antoine, e condenado sem qualquer prova ao suplício na roda. Todo o caso teve início com o grito de um popular desconhecido, dizendo que Jean Calas havia enforcado seu filho Marc-Antoine. “Esse grito, repetido, logo tornou-se unânime”[2], ao ponto de uma inverdade tornar-se “veraz”.
O suplício de Jean Calas apenas atesta que o desconhecimento dos fatos, a intolerância e o preconceito religioso criam lendas. Infelizmente, por vezes, essas lendas são mais fortes do que qualquer fato. Em relação à recusa de transfusão de sangue por Testemunhas de Jeová, mutatis mutandis, não tem sido diferente.
É de conhecimento mundial que as Testemunhas de Jeová, em razão de suas crenças, não aceitam transfusões de sangue[3]. Em torno desse fato, certas lendas foram criadas e amplamente disseminadas nos meios médico e jurídico. Tais como o grito repetido que resultou na condenação de Jean Calas, estas lendas têm causado suplício não só aos pacientes, como aos próprios médicos. Servem como combustível que intensifica um medo que tira o sono desses profissionais: o processo. Esse medo provoca aflição e dificuldades em abordar o tema em questão.
Com o objetivo de proporcionar ao leitor esclarecido e interessado a oportunidade de exercer um juízo neutro e imparcial de ponderação, passamos a comentar alguns aspectos legais mais comuns pertinentes ao tema. Acima de tudo, visamos proporcionar tranquilidade aos profissionais da área médica em sua desafiadora atividade diária.
Desmascarando a lenda – A Decisão do Superior Tribunal de Justiça no HABEAS CORPUS nº 268.459
Atualmente, uma das principais lendas envolvendo a recusa de transfusão de sangue por Testemunhas de Jeová diz respeito à decisão do Superior Tribunal de Justiça no HC 268.459/SP, processo do qual podemos comentar com propriedade, uma vez que integramos a equipe de advogados que atuou no caso, conhecendo seus detalhes e bastidores.
Uma adolescente com anemia falciforme, no ano de 1993, faleceu em um hospital da cidade de São Vicente, São Paulo. Os pais, que temos o privilégio de conhecer pessoalmente, foram injustamente submetidos a um processo criminal por homicídio doloso sob a acusação de terem “impedido” a realização de transfusão de sangue em sua filha.
Tal acusação não resistiu aos fatos. Desde o diagnóstico, o casal sempre proporcionou assistência médica adequada para a filha, possibilitando-lhe viver com qualidade mesmo diante da grave enfermidade. Na última internação, mais uma vez os pais procuraram o hospital a tempo. Nessa ocasião, o casal apenas exerceu seu consentimento informado para que a filha recebesse tratamento por meio de um protocolo médico não transfusional. Jamais impediram qualquer tratamento reputado como necessário.
Reconhecendo isso, o STJ, ao julgar a conduta dos genitores (não dos médicos), concluiu que não há crime na conduta de pais que levam o filho para o hospital e que apenas expressam dissentimento com a realização de transfusão de sangue.
Portanto, é preciso salientar em definitivo: o caso envolvia uma menor de idade. Logo, o Habeas Corpus n.º 268.459/SP não pode ser utilizado como parâmetro para o tratamento de pacientes adultos Testemunhas de Jeová. A própria decisão do STJ deixou bem claro, nos termos de um de seus votos, que o entendimento não se aplica a adultos: “Nesse sentido, o que se tem verificado, grosso modo, é que a decisão pela recusa de sangue só estaria amparada pela liberdade religiosa caso fosse tomada por um adulto, plenamente capaz e no gozo de suas faculdades mentais, e quando este fosse o próprio paciente”. Assim, o próprio Tribunal ressalva que questões envolvendo pacientes adultos e capazes requerem outro enfoque.
Igualmente importante destacar que os médicos que trataram a jovem não foram processados pelo Ministério Público. Foram processados os pais da jovem e um amigo da família, que por coincidência era médico, porém processado não por sua atuação profissional, mas pelo seu envolvimento ao lado dos pais, como pessoa comum. Ao final, ninguém restou condenado. Nem os pais. Nem o amigo da família. E, obviamente, nem os médicos, que sequer eram partes no processo.
Como integrantes da equipe de advogados que atuou neste processo, preocupa-nos a maneira despreparada ou extremista como alguns artigos interpretam a referida decisão, instilando mais medo e promovendo desagregação. Um destes artigos[4] menciona que a decisão foi tomada pelo “Supremo Tribunal de Justiça”, o que revela, com o devido respeito aos seus subscritores, total despreparo para comentar o julgado. Tal Corte não existe em nosso sistema judicial. Antes, na cúpula do Poder Judiciário temos o Supremo Tribunal Federal (STF), afeto às matérias de índole eminentemente constitucional, e o Superior Tribunal de Justiça (STJ), que trata de matérias pertinentes à legislação federal e à uniformização de jurisprudência. Neste segundo é que foi julgado o referido caso.
A alegação de que essa decisão do STJ, envolvendo um menor de idade, delimitou a tutela do Estado sobre o tema e que o médico deve desrespeitar a autonomia do paciente adulto, é enganosa e juridicamente temerária. Incita conduta que poderá culminar em problemas legais para o médico, como evidencia o recente julgamento do STJ, nos autos do Recurso Especial n.º 1.540.580/DF, julgado em 02/08/2018.
Nesse julgamento, o STJ condenou médico e hospital que desrespeitaram a autonomia do paciente, reconhecendo que o paciente tem “capacidade de se autogovernar, de fazer opções e de agir segundo suas próprias deliberações”. Nas palavras do Ministro Luis Felipe Salomão, relator para o acórdão: “o que se procura garantir é o estabelecimento de uma relação de negociação, na qual o médico compartilha os seus conhecimentos técnicos e garante ao paciente a tomada de decisões a partir de seus próprios valores, no exercício de sua autonomia.”
Na realidade, desconhecemos registro na jurisprudência brasileira que qualquer médico tenha sido condenado por deixar de aplicar sangue em paciente Testemunha de Jeová, por respeito à sua posição. Nem mesmo no âmbito administrativo do Conselho Federal de Medicina. Muito pelo contrário, conforme se verificará a seguir.
O Conselho Federal de Medicina (CFM) e a sua posição claudicante
Sabe-se que a Resolução CFM 1.021/80 impõe ao médico transfundir sangue no paciente adulto Testemunha de Jeová, mesmo sem o seu consentimento, em caso de risco de morte.
Foi criada a lenda de que esta Resolução é “lei” e que esta “lei” determina o dever de transfundir em caso de risco de morte do paciente. Neste aspecto, é inviável para um operador do Direito ficar silente. A Resolução CFM 1.021/80 não é lei e tampouco tem força de lei. É um regramento administrativo, hierarquicamente inferior à lei e, principalmente, à Constituição Federal[5]. Nenhuma Resolução ou regramento ético deve prevalecer sobre ditames constitucionais e legais, máxime quando são expressões da “dignidade da pessoa humana”.
Não é exagero afirmar que a referida Resolução, bem como outras que se alinham no mesmo sentido (como a Resolução CREMERJ 136/99), não oferecem qualquer segurança jurídica ou referência para o médico. Basear-se em suas diretrizes pode levar o médico a praticar conduta incompatível com as melhores disposições éticas, legais e constitucionais.
O próprio Conselho Federal de Medicina singra agora em sentido contrário, nos termos do Parecer CFM 12/2014[6], que estabelece em sua Ementa “a necessidade da publicação de Resolução sobre transfusão de sangue e a revogação da Resolução CFM nº 1.021/80”.
No corpo do Parecer, o eminente Conselheiro que o lavrou aponta, com propriedade e fundamento, que “(…) os ditames da Resolução CFM 1.021/80, editada na vigência da CF de 1967 e do CEM de 1965, por seu pragmatismo decorrente, à época, de limites mais estreitos dos conceitos éticos e morais e da ciência médica, são desprovidos de maiores evidências e deixam, pela amplitude de interpretação, no campo da subjetividade o critério científico do termo ‘iminente perigo de vida’, ou seja, do risco iminente de morte, bem como, não dispõe elementos técnicos precisos para os limites e parâmetros de indicação da transfusão de sangue e seus componentes, que possam orientar a terapêutica em casos específicos e individuais como os das Testemunhas de Jeová. Assim, tornou-se temerária aos conceitos morais e éticos contemporâneos e inconsistente com o progresso científico da medicina”. Afinal, o parecer termina com a recomendação: “Com substrato nestas considerações penso que urge a publicação de uma nova Resolução e consequente revogação da Resolução CFM nº 1021/80”.
A Resolução CFM 1.021/80 encontra-se também superada pela jurisprudência do próprio Conselho Federal de Medicina. De fato, o Tribunal Superior de Ética Médica do CFM, nas únicas três vezes que chamado a enfrentar o tema, em diferentes câmaras, expressou o mesmo entendimento sóbrio e coerente: o médico que deixa de transfundir sangue em paciente, respeitando sua consciência e valores íntimos, não comete nenhuma infração ética. Portanto, não merece qualquer reprimenda (Processo n.º 5.793/1998[7], Processo n.º 654/2000[8] e Processo n.º 1.251/2011).
Talvez o leitor indague: Se o Conselho Federal de Medicina julga contra a Resolução CFM 1.021/80 e entende que se trata de norma obsoleta, como afirmar categoricamente que o médico estará cumprindo com seus deveres éticos e legais se acatar seus ditames?
É preciso alertar que o apego a uma Resolução que contraria a lei e a Constituição tem levado profissionais à prática de transfusão de sangue forçada mediante atos desumanos (contenção no leito por meio de amarrações, uso de sedativos, aflição mental, etc.). Não são poucos os operadores do Direito e até mesmo membros do Ministério Público que começam a definir a conduta dos médicos que intervêm contra a vontade do paciente nesses moldes, faltando ao respeito com sua consciência, como crime de tortura, independentemente da existência de iminente risco de vida.
O mesmo se diga em relação ao Código de Ética Médica que, assim como a Resolução CFM 1.021/80, é hierarquicamente inferior à Constituição Federal e enfrenta um abismo cada vez maior em relação à legislação do país. A afronta deliberada da autonomia do paciente adulto por mera intepretação de preceitos éticos do CFM é ilegal e coloca cada vez mais o profissional de saúde em franca situação de risco jurídico.
O que fazer diante deste cenário? Em virtude da posição claudicante do CFM no assunto, recomenda-se aos diligentes profissionais de saúde que se mantenham informados e atualizados com os contínuos avanços médicos, que afinal não beneficiam apenas as Testemunhas de Jeová, mas toda a sociedade. O dever de atualização envolve conhecer e utilizar os tratamentos e procedimentos médicos que dispensam o uso de transfusões de sangue.
Novamente, o CFM mediante sua Recomendação 1/2016 declara: “(…) a conduta do médico já não pode limitar-se à constatação de risco de morte para transfundir sangue compulsoriamente, mas precisa levar em consideração as recentes alternativas disponíveis de tratamento ou a possibilidade de transferência para equipes com profissionais treinados em tratamentos através de substitutos do sangue.”[9]
Neste aspecto, a prestigiada Revista Brasileira de Anestesiologia tem publicado diversas matérias de apurado valor científico que mencionam técnicas que evitam o uso de transfusão de sangue em situações emergenciais, inclusive: “Patient Blood Management: por onde começar?” (Rev Bras Anestesiol. 2016; 66(3):333—334); “Conhecimento dos anestesiologistas sobre transfusão de concentrado de hemácias em pacientes cirúrgicos” (Rev Bras Anestesiol. 2017;67(6):584—591); “Transfusão Sangüínea no Intra-Operatório, Complicações e Prognóstico” (Rev Bras Anestesiol. 2008; 58: 5: 447-461); “Estudo randômico e duplo-cego de profilaxia com fibrinogênio para reduzir o sangramento em cirurgia cardíaca” (Rev Bras Anestesiol. 2014;64(4):253—257); “Perfil transfusional em diferentes tipos de unidades de terapiaintensiva” (Rev Bras Anestesiol. 2014;64(3):183—189); “Dois anos de experiência com recuperação intraoperatória de sangue em artroplastia total do quadril” (Rev Bras Anestesiol. 2016;66(3):276—282).
Nunca é demais lembrar que Portarias do Ministério da Saúde[10] e a Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (RENAME)[11] alistam procedimentos e fármacos que podem ser empregados para evitar a transfusão. Também, o Brasil se comprometeu perante a Sexagésima Terceira Assembleia da Organização Mundial da Saúde a prover treinamento para as equipes envolvidas em transfusões clínicas, com a promoção de alternativas, incluindo a transfusão autóloga e o gerenciamento do sangue do próprio paciente.[12]
E algo de extrema importância deve ser salientado: legalmente, o médico não se compromete a curar. A Medicina é considerada como atividade de meio; não de resultado. Assim, o comprometimento do médico é com o domínio de sua técnica e com o respeito ao seu paciente como ser dotado de valor próprio e autodeterminação.
Talvez um dos problemas ao enfrentar essa temática seja o fato de que a transfusão de sangue, ainda que não seja o único, é considerada um tratamento padrão e rotineiro. As campanhas que mobilizam as doações de sangue evocam sentimentos altruístas. Assim, a recusa à transfusão em razão de crenças religiosas pode ser vista equivocadamente como um ato suicida proveniente de fanatismo religioso. Mas isso não é verdade; tornou-se uma lenda. Protocolos que evitam a transfusão já são bem definidos e incentivados na prática médica.
Das disposições do código penal brasileiro
Uma das preocupações dos médicos no atendimento de pacientes Testemunhas de Jeová é a propalada responsabilidade pelo crime de omissão de socorro, tipificado no art. 135 do Código Penal[13].
Todavia, este não é o entendimento da melhor doutrina[14] e jurisprudência[15].
A análise do tipo indica que a conduta punível do art. 135 do Código Penal é “deixar de prestar assistência”. Guilherme de Souza Nucci ensina que “deixar significa abandonar, largar, soltar. No caso presente, deixar de prestar quer dizer não prestar socorro”[16]. É preciso, portanto, que o paciente não receba qualquer tratamento médico ou simplesmente não seja atendido, para configurar omissão de socorro.
Além do mais, o crime de omissão de socorro só é punido a título de dolo, ou seja, é necessária manifesta intenção por parte do médico de abandonar aquele que necessita de ajuda, deixando deliberadamente de prover-lhe o socorro necessário, abandonando-o à sua própria sorte e risco.
Definitivamente, não é esta a situação do médico diligente que proporciona tratamento e presta socorro ao paciente de acordo com o consentimento informado deste. Há nítida diferença entre “deixar de prestar assistência” e tratar o paciente com o emprego de técnicas que dispensam o uso de transfusão de sangue.
Curiosamente, ainda que vez por outra se aborde esse assunto no meio jurídico, não há registro na jurisprudência de condenação por omissão de socorro médico no tratamento de pacientes Testemunhas de Jeová. Este é mais um fato que contradiz o mito.
Ainda no campo penal, há quem alegue que o médico está autorizado a desconsiderar a decisão do paciente e transfundi-lo contra a vontade em virtude do art. 146, § 3.º, I, do Código Penal, o qual prevê o “iminente perigo de vida” como excludente da ilicitude do crime de constrangimento ilegal[17].
No entanto, esse dispositivo não criminaliza a conduta do médico que respeita a vontade do paciente. Tampouco é uma autorização ou imposição para ministrar um tratamento compulsório. A excludente do “iminente perigo de vida” e a intervenção médica nessas situações sem autorização expressa do paciente se dá pelo chamado “consentimento presumido”. Isto é, quando o paciente realmente se encontra em estado de risco e não é possível saber qual o desejo deste para determinada intervenção por nenhum meio, o médico deve agir, o que é inegavelmente apreciado.
Uma situação oposta é a do paciente em situação emergencial que manifestou seu consentimento para receber determinado tratamento e recusou outro, seja de forma verbal ou por documento de diretivas antecipadas. O “iminente perigo de vida” não retira a validade da manifestação prévia do paciente[18].
Conclusão – Atuação médica segura
A verdade tem um poder libertador quando devidamente aplicada. Por meio dela, Voltaire obteve a reabilitação da memória de Jean Calas e a absolvição de sua família. Mas essa mesma verdade teria, contrário à conclusão de Voltaire, ‘detido a excitação dos espíritos’ e libertado Jean Calas da condenação e da morte se tão somente fosse aplicada antes de se dar margem à criação de lendas. Assim, a História ensina, até mesmo por tristes relatos, como evitarmos a repetição de erros causados pela desinformação e pelo preconceito, os quais podem condenar certos grupos a um tratamento diverso daquele conferido a todo e qualquer cidadão.
Feitos tais esclarecimentos, a prestação de uma assistência médica segura envolverá conhecer e utilizar uma abordagem terapêutica ou cirúrgica atualizada sem sangue e documentar a decisão do paciente, bem como todas as etapas do tratamento.
Quanto à segurança jurídica-documental, o CFM apresenta na Recomendação 1/2016[19] um guia para a preparação do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), cujo objetivo é registrar o protocolo médico adotado entre o profissional e o paciente, contendo a sua descrição, consequências, riscos e alternativas[20]. Quando o paciente registra sua recusa de transfusão e seu consentimento para outro tratamento no TCLE, “tem sua vontade e autonomia expressa neste documento e o médico sua responsabilidade delimitada”[21].
Outros documentos são igualmente importantes. O prontuário também poderá conter as decisões do paciente e a evolução do tratamento escolhido a fim de comprovar que a atuação foi norteada pela decisão autônoma do paciente[22]. Documentos de “diretivas antecipadas” também são admitidos como expressão válida dos desejos do paciente, já regulados pelo CFM (Resolução CFM 1.995/12).
Sabemos que nem todas as afirmações acima são realmente aquilo que alguns médicos gostariam de ler. Mas podemos afirmar com sinceridade, de forma confiante e positiva, que respeitar a dignidade de cada ser humano competente e juridicamente capaz, reconhecendo seu direito sagrado de tomar as decisões finais que dizem respeito à sua própria vida e assumir de modo livre e esclarecido suas consequências, é sempre o caminho melhor e mais seguro a ser trilhado pelos médicos.
As Testemunhas de Jeová são parte de um crescente movimento global, hoje presente em mais de 230 terras, que divulga sua mensagem em mais de 986 idiomas através de suas publicações e do seu site institucional.[23] O paciente Testemunha de Jeová não é um inimigo do médico. É apenas um paciente que possui uma identidade religiosa forte e que deseja receber tratamento médico de qualidade de acordo com seu consentimento informado.
Dessa forma, as informações trazidas nesta matéria têm por objetivo demonstrar que tanto do ponto de vista legal como constitucional, os médicos podem sentir-se seguros no tratamento dos pacientes Testemunhas de Jeová.
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Notas
[1] VOLTAIRE. Tratado da Tolerância: a propósito da morte de Jean Calas. Tradução de Paulo Neves. Martins Fontes. 1993, p. 6.
[2] VOLTAIRE. Ob. Cit., p.6.
[3] O presente artigo não discorrerá sobre as razões religiosas que levam o paciente Testemunha de Jeová a recusar transfusão de sangue. Limitar-se-á ao direito compreendido, não importando a questão motivadora.
[4] Takaschima, Augusto Key Karazawa, et al.. Dever ético e legal do anestesiologista frente ao paciente testemunha de Jeová: protocolo de atendimento. Revista Brasileira de Anestesiologia. (http://dx.doi.org/10.1016/j.bjan.2015.03.008)
[5] STJ – Agravo Regimental no REsp n.º 354.510-MG.
[6] Parecer disponível em: https://sistemas.cfm.org.br/normas/visualizar/pareceres/BR/2014/12
[7] Não se vislumbra indícios de infração ética quando o médico deixa de instituir procedimentos diagnósticos ou terapêuticos necessários ao tratamento do seu paciente, quando impedido por recusa consciente do paciente e de seus familiares, decorrente de motivos de ordem religiosa.
[8] A médica deixou de fazer transfusão de sangue a uma paciente em obediência à sua vontade expressa previamente. Como não se deve desrespeitar a autonomia da paciente, foi absolvida.
[9] Disponível em: https://portal.cfm.org.br/images/Recomendacoes/1_2016.pdf
[10] A Portaria de Consolidação n.º 5/2017, anexo IV, prevê, em procedimentos cirúrgicos, o uso de duas técnicas que envolvem o manejo do sangue do próprio paciente que podem evitar uma transfusão: a hemodiluição normovolêmica aguda e a recuperação intraoperatória de células (arts. 221 e 222). Determina, também, a presença de médico responsável pelo programa de transfusão autóloga pré-operatória e de recuperação intraoperatória (art. 224).
[11] Nesta lista estão incluídos itens como acetato de desmopressina, ácido fólico, ácido tranexâmico, albumina humana, alfaepoetina, complexo protombínico humano, danazol, fatores IX, VII e XII de coagulação, sulfato ferroso, micronutrientes, solução ringer + lactato, selante de fibrina, bem como o coagulador de argônio, que visam o ótimo gerenciamento e aproveitamento do sangue do próprio paciente, estando disponíveis na rede de saúde pública.
[12] “ (…) to establish or strengthen systems for the safe an rational use of blood products and to provide training for all staff in clinical transfusion, to implement potential solutions in order to minimize transfusion errors and promote patient safety, to promote the availability of transfusions alternatives including, where appropriate, autologous transfusion and patient blood management” – Sixty Third World Health Assembly. (World Health Organization – http://apps.who.int/gb/ebwha/pdf_files/wha63-rec1/wha63_rec1-en.pdf)
[13] Art. 135 – “Deixar de prestar assistência, quando possível fazê-lo sem risco pessoal, à criança abandonada ou extraviada, ou à pessoa inválida ou ferida, ao desamparo ou em grave e iminente perigo; ou não pedir, nesses casos, o socorro da autoridade pública: Pena – detenção de um a seis meses, ou multa. (…)”
[14] Neste sentido, o escólio de Nelson Nery Júnior em parecer específico sobre o tema, segundo o qual “a sujeição do médico à vontade do paciente não pode caracterizar omissão de socorro, tipificado no CP 135. Se é certo que o paciente tem o direito de escolher não se submeter a determinado tratamento, o médico tem o dever de respeitar a decisão do paciente”. Acrescenta ainda: “Desse modo, o médico que recomenda a transfusão de sangue, ao contrário do que exige o tipo, tem a intenção de tratar o paciente. Se este a recusa, não há que se falar em omissão de socorro por parte do médico, sendo atípica a conduta, porque falta a ela o elemento subjetivo do tipo, ou seja, o dolo de submeter o sujeito passivo à situação de perigo iminente ou eventual”. (NERY JUNIOR, Nelson. Direito de Liberdade e a recusa de tratamento por motive religioso. Parecer Jurídico. Revista de Direito Privado, n.º 41, Jan/Mar de 2010, Ed. Revista dos Tribunais, pp. 259)
[15] OMISSÃO DE SOCORRO – Agentes que não permitem a transfusão de sangue em vítima menor – Socorro ministrado sob diferente forma terapêutica – Inteligência do art. 135 do CP – Ausência de justa causa para ação penal – Ordem concedida para seu trancamento – Tribunal de Alçada Criminal do Estado de São Paulo, Habeas Corpus nº 184.642/5, 9ª Câmara, 30.8.89.
[16] NUCCI, Guilherme de Souza – Código Penal Comentado – Revista dos Tribunais, p. 702, 2013.
[17] Art. 146 – Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, ou depois de lhe haver reduzido, por qualquer outro meio, a capacidade de resistência, a não fazer o que a lei permite, ou a fazer o que ela não manda: Pena – detenção, de três meses a um ano, ou multa. (…) § 3º – Não se compreendem na disposição deste artigo: I – a intervenção médica ou cirúrgica, sem o consentimento do paciente ou de seu representante legal, se justificada por iminente perigo de vida; (…)
[18] De acordo com Nelson Nery Junior em citado parecer: “inexiste o constrangimento ilegal quando o médico, por motivo de iminente perigo de vida, realiza intervenção cirúrgica sem o consentimento do paciente. Isto não quer significar, todavia, que o médico possa realizar a intervenção contra o consentimento do paciente. É dizer, se o praticante da religião Testemunhas de Jeová tiver emitido declaração de vontade válida e prévia à situação de iminente perigo, expressando sua recusa em receber transfusão de sangue, não poderá o médico sob a alegação de que o paciente corria risco de vida, constrangê-lo a receber a transfusão contra a sua vontade.” (Ob. Cit., p. 260)
[19] Disponível em: https://portal.cfm.org.br/images/Recomendacoes/1_2016.pdf
[20] Segundo definido pelo STJ, no citado Recurso Especial n.º 1.540.580/DF: “Haverá efetivo cumprimento do dever de informação quando os esclarecimentos se relacionarem especificamente ao caso do paciente, não se mostrando suficiente a informação genérica. Da mesma forma, para validar a informação prestada, não pode o consentimento do paciente ser genérico (blanket consent), necessitando ser claramente individualizado.”
[21] MINOSSI, José Guilherme e SILVA, Alcino Lazaro. “Medicina defensiva: uma prática necessária?” Revista do Colégio Brasileiro de Cirurgiões [periódico na Internet] 2013;40(6).
[22] VALADARES, Leandro. A Questão Jurídica no Atendimento Médico de Pacientes Testemunhas de Jeová. Disponível em https://www.conjur.com.br/2017-jun-10/opiniao-questao-juridica-atendimento-testemunhas-jeova
[23] https://www.jw.org/pt/
Referências bibliográficas
CFM. Parecer CFM 12/2014. Assunto: Resolução CFM 1021/80, que trata sobre a recusa pelos adeptos da Testemunha de Jeová em permitir a transfusão sanguínea. Rel. Carlos Vital Corrêa Lima. Disponível em: https://sistemas.cfm.org.br/normas/visualizar/pareceres/BR/2014/12
CFM. Recomendação 1/2016. Assunto: Dispõe sobre o processo de obtenção de consentimento livre e esclarecido na assistência médica. Disponível em: https://sistemas.cfm.org.br/normas/visualizar/recomendacoes/BR/2016/1
CFM. Resolução CFM 1995/12. Assunto: Dispõe sobre as diretivas antecipadas de vontade dos pacientes. Disponível em: https://sistemas.cfm.org.br/normas/visualizar/resolucoes/BR/2012/1995
MINOSSI, José Guilherme e SILVA, Alcino Lazaro. Medicina defensiva: uma prática necessária? Revista do Colégio Brasileiro de Cirurgiões [periódico na Internet] 2013;40(6). Disponível em URL: http://www.scielo.br/rcbc
NERY JUNIOR, Nelson. Direito de Liberdade e a recusa de tratamento por motive religioso. Parecer Jurídico. Revista de Direito Privado, n.º 41, Jan/Mar de 2010, Ed. Revista dos Tribunais, pp. 223/292
NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado – Revista dos Tribunais, 2013.
STJ. AGRAVO REGIMENTAL no Recurso Especial n.º 354.510-MG. Relatora: Denise Arruda. DJ 24/05/2004 p. 156. Disponível em: https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/inteiroteor/?num_registro=200101280290&dt_publicacao=24/05/2004
STJ. HABEAS CORPUS n.º 268.459/SP. Relatora: Ministra Maria Thereza de Assis Moura. DJe 02/03/2015. Disponível em:
https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/inteiroteor/?num_registro=201301061165&dt_publicacao=02/03/2015
STJ. RECURSO ESPECIAL n.º 1.540.580/DF. Relator: Lázaro Guimarães. DJe 04/09/2018. Disponível em: https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/inteiroteor/?num_registro=201501551749&dt_publicacao=04/09/2018
Takaschima, Augusto Key Karazawa, et al.. Dever ético e legal do anestesiologista frente ao paciente testemunha de Jeová: protocolo de atendimento. Revista Brasileira de Anestesiologia. (http://dx.doi.org/10.1016/j.bjan.2015.03.008)
VALADARES, Leandro S. A Questão Jurídica no Atendimento Médico de Pacientes Testemunhas de Jeová. Disponível em https://www.conjur.com.br/2017-jun-10/opiniao-questao-juridica-atendimento-testemunhas-jeova
VOLTAIRE. Tratado da Tolerância: a propósito da morte de Jean Calas. Tradução de Paulo Neves. Martins Fontes. 1993, p. 6.
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Dra. Ana Paula Simões Médica do esporte, ortopedista e traumatologista, professora instrutora e mestre pela Santa Casa de São Paulo, especialista em medicina esportiva e cirurgiã do tornozelo e pé.